segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

SeXXo e SeXYo

No livro Inventando o Sexo, publicado no Brasil em 2001, o historiador Thomas Laqueur relata que, até o século XVIII, a diferença sexual entre homens e mulheres não existia enquanto categoria. Até então, de acordo com o autor, imperava o modelo de sexo único: o masculino.
O sexo feminino  era visto como o sexo masculino invertido. Ou seja, como a mulher não possuía o mesmo "calor vital" do homem, seus órgãos sexuais não se desenvolviam para o lado de fora do corpo e sim para o seu interior. Dessa forma, acreditava-se que o útero correspondia ao escroto; os ovários aos testículos e o canal vaginal ao pênis. 
Mais do que um corpo sexual e reprodutivo invertido, esta visão atribuía um valor hierárquico superior àqueles que possuíam os órgãos sexuais e, obviamente, se refletia nas relações de poder.  Só no século XIX é que se passou a reconhecer a mulher como um outro corpo.
Em outra publicação, Sexo Solitário – Uma História Cultural da Masturbação, o mesmo autor aborda o tema partindo das conclusões do médico suíço Simon André Tissot, no século XVIII. Com dificuldades de diagnosticar algumas doenças, Tissot concluiu ser a masturbação a causa de vários males tanto físicos como mentais. Nascia, assim, a Teoria da degeneração sexual, aceita por muitos médicos da época. O chamado "vício solitário", "autoestupro", "autoemasculação" e "autoabuso", apavorava adultos e crianças em escolas, conventos, lares burgueses, quartéis e fábricas. A indústria e o comércio, por seu lado, responderam prontamente ao apelo do mercado. Um arsenal de poções e pílulas antimasturbatórias, alarmes contra a ereção, bainha para pênis, luvas de dormir etc. foi fabricado para combater o "vício secreto”[1]. Nenhuma referência a masturbação feminina logicamente.
Utilizamos essas duas situações históricas para chamar a atenção para dois aspectos importantes sobre gênero, sexualidade e saúde reprodutiva. O primeiro deles é a pretensa superioridade de um sexo sobre o outro com base na biologia. O outro é o controle sobre o desejo e os prazeres do corpo.
O sexo traz uma marca forte da biologia, ou seja, quando falamos em sexo num sentido mais restrito, estamos falando de vários componentes biológicos que diferenciam os homens e as mulheres. Em termos genéticos, os homens têm cromossomos XY e as mulheres XX; os hormônios femininos são o estrógeno e a progesterona e o masculino é a testosterona; os órgãos genitais masculinos e femininos – externos e internos – são diferentes. E é por meio desse conjunto de características que, ao nascer, distinguimos as meninas e os meninos.

Quando falamos de gênero focalizamos as dimensões da cultura, da história, da política e da economia. Existem, sim, diferenças entre os sexos. Só que essas diferenças vão bem além de seus corpos. Várias das coisas que podemos ou devemos fazer como homens e mulheres são ditas por nossos familiares, professores/as, profissionais da saúde, meios de comunicação. Assim, gênero se refere à forma como uma determinada cultura diferencia as mulheres e os homens, restringindo privilégios e poderes.

A sexualidade tem a ver com a busca do prazer e com nossas escolhas e orientações. Quando falamos em sexualidade nos referimos não só ao ato sexual, mas, também, a uma dimensão da vida humana que se constrói, desde o nascimento até a morte, no encontro entre o afetivo, o biológico e o social.
Esse processo acontece de forma diferente em cada pessoa. Durante o desenvolvimento, algumas pessoas orientam essa busca por prazer e afeto para pessoas do outro sexo, outras para pessoas do mesmo sexo, outras ainda, para pessoas de ambos os sexos. O estudo da sexualidade demonstra que, ao redor dos nossos corpos, estão os modos como percebemos, sentimos, definimos, entendemos e, acima de tudo, praticamos os afetos e o sexo propriamente dito.

Fonte: adaptado de MEDRADO, Benedito (coord.) A diversidade é legal!: Educação e Saúde sem Preconceito. Recife: Instituto PAPAI, 2007.

Trazendo o nosso olhar para o século XXI, percebemos que muita coisa mudou nestes últimos três séculos. Nos dias de hoje, a luta pela igualdade – de gênero, de raça/etnia, de orientação sexual, dentre outras -- já faz parte da agenda de boa parte da sociedade civil organizada, bem como a ciência nos surpreende sistematicamente com descobertas que possibilitam a escolha de ter ou não filhos e até mesmo que mudemos de sexo.
No entanto, no que diz respeito a gênero, sexualidade e saúde reprodutiva, não são raras as vezes que nos deparamos com algumas visões e ações que nos remetem a séculos passados. A proibição de que adolescentes frequentem as aulas sobre saúde sexual e saúde reprodutiva por algumas igrejas ou a negação ao acesso de adolescentes desacompanhados por seus familiares ao teste anti-HIV nos serviços de saúde, são alguns exemplos. Do mesmo modo, a demonização da mídia e da internet como responsáveis pela “perda de valores” e pela “luxúria”, são alguns dos fatores que dificultam o avanço de projetos e programas nas áreas da saúde sexual e reprodutiva que tenham como perspectiva a igualdade e a equidade.
Por esta razão, vale até nos perguntarmos: será que nossa visão sobre sexo se atualizou ou ainda é a mesma de séculos atrás?


[1] COSTA, Jurandir Freire. O lado escuro do Iluminismo.
Disponível em:  http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/artigos/artigos_html/iluminismo.html